5.9.08

As cartas

cartas














Houve uma noite em que a Dona Ruth escreveu 23 cartas para o estrangeiro, ao fim de uma das longas sessões de escrita de cartas encomendadas pela sua amiga Filipa, uma senhora solteira com o dobro da sua idade. Dona Filipa era religiosa e amiga dos padres, não tinha filhos; era uma mulher dada e estimada por todos na Cidade de S. Pedro. A maior parte das suas dezenas de afilhados vivia no estrangeiro, e eram os destinatários das suas missivas.

As duas passavam horas, dias, semanas, meses e anos mergulhadas naquele ritual. Cada carta, um rosto, cada história, novas nuances. A acompanhar Dona Ruth nessas sessões de escrita que iniciavam pela tarde e invariavelmente entravam a noite, estava sempre a sua filha Patrícia: a menina que cresceu naquele ambiente de confluência de tempos e de lugares. Foi um pouco dessa forma que Patrícia começou a ter contacto com o mundo mais ao largo, e tendo esse universo como pano de fundo, aprendeu a sonhar. A mãe Ruth, além de enfermeira, catequista, e uma espécie de activista sócio-comunitária, tinha essa doce responsabilidade: escrever cartas de várias famílias da cidade de S. Pedro. Aqueles que podiam se deslocavam à sua casa, os mais idosos recebiam a sempre aguardada visita da Ruth.

Com o tempo, Patrícia começou a seguir as pegadas da mãe: escreveu cartas alegres, tristes; cartas que davam conta de agruras, de necessidades materiais, mas também de alegrias, de saúde e de esperança de boas azáguas.
As cartas que chegavam eram também uma espécie de tónico para os sonhos da Patrícia. A jovem de imaginação esvoaçante conseguia descortinar, nas frases que lia, rostos e avenidas em cidades estrangeiras... Terras para onde sempre chegavam as respostas. Vivências em letras que preenchiam algures a motivação existencial e onírica da jovem. Cartas de gentes simples com vidas difíceis que fizeram da Patrícia um poço de muitas estórias.

30.8.08

Há tempo que nunca passa


















Santa Lúcia era uma cidade pacata, mas tinha cinema três vezes por semana. A qualidade dos filmes era duvidosa, e os frequentadores da tosca sala, na sua maioria, tinham uma preferência desmesurada por tramas de acção, a ponto dos seus gestos e piropos concorrerem, em grau e número, com os burlescos golpes dos lutadores na tela. Os gritos e os comentários inoportunos desse público faziam parte do ambiente, e os espectadores menos comuns, como a Letícia e o seu professor Gonçalo, estavam obrigados a fingir-se de distraídos nos seus assentos, ou a ensaiar um sorriso cordata de vez em quando.Letícia era espectadora assídua dos filmes. Aquilo tudo a impelia para um mundo imaginário, mais ao largo, que acreditava poder descobrir e explorar. Nunca estava ali diante dos filmes que raramente a tocaram, mas algures para onde a sua imaginação esvoaçante a conseguia transportar. Gonçalo, jovem, bonito, solteiro e inteligente era o professor preferido da Letícia, amigo a ponto de suscitar em terceiros outras leituras.Os dias e as semanas beiravam, para os dois, a uma intensa e agradável mesmeidade: Letícia e Gonçalo juntos a caminho do liceu, na biblioteca municipal, no cinema, na praça a conversarem sobre a capital, filosofia, Paris, que ele conhecera e ela não, a trocarem discos de Jacques Brel, Elsa Lunghin, Phil Collins, Mark Knopfler e Jean Jacques Goldman.Gonçalo estava de regresso à Santa Lúcia, e Letícia tencionava partir, mas a situação nunca fora motivo de desencontros entre ambos, pois tinham o poder de viver em instantes a imensidão.Letícia partiu, como projectara, e foi obrigada a abandonar a rotina mais apetecível de que algum dia tivera, mas Gonçalo permaneceu na Cidade. Os anos se passaram e ambos se fizeram, seguindo as pegadas dos próprios destinos.Os filhos, os amores e as novas responsabilidades ocuparam o espaço daqueles anos de amizade cúmplice que a memória se encarregou de perpetuar.

imagem: magrite

29.8.08

As memórias de Patrícia


















Eu sempre vivi entre o interior e a cidade". Assim respondia Manuel António às múltiplas situações de conversa e desoras a que todo homem perto da terceira idade está envolvido. Era calceteiro invicto, e mesmo quando não havia obra certa, rumava às seis da manhã à cidade das calçadas para comprar as frutas da época, e trocar dois dedos de prosa com os seus confrades. Estes, estivadores, tabaqueiros, pescadores e reformados do carreto, nunca perdiam o élan de abordar os temas eternos como as azáguas, a crise crustácea do mar, a doença de um confrade, e a morte de um mortal do seu tempo. Todo aquele cenário era de um profundo saudosismo, mesmo dos tempos em que se morria à míngua, da época em que irmãos e amigos partiram para São Tomé para o contrato nas roças. Manuel António era um homem de altura mediana, corpo firme, usava umas calças de pano de boca sino, e umas sandálias a lembrar o típico preto velho do tempo dos cativeiros, embora abdicasse do chapéu e do cachimbo. Mas a alma era de um preto velho.
Entre as conversas e umas rondas pelos mesmos locais da cidade, Manuel António nunca dispensava um café às 10 horas em casa de Joana, uma senhora mais velha, corpulenta, e dona de todas as memórias: Joana estivera em São Tomé e nunca chegara a trabalhar nas roças, por causa da doença que a importunava, e isso constituía uma das maiores relíquias da sua estada na linha do Equador. A filha que morrera aos 4 anos nas plantações envolvia-a numa profunda melancolia de que nunca conseguira libertar. Manuel António conhecia esta e outras histórias de Joana que, entretanto, faleceu, interferindo, em partes, na sua rotina impulsiva.
Os anos se passaram e a vida de Manuel António foi tomando rumos diferenciados. Deixou de ser calceteiro, a profissão de sua vida, e passou a ser guarda-nocturno nas lojas da cidade.
Patrícia conhecia Manuel António em criança, e depois de anos, passara por ele e nem o breu puro da noite o impedira de a reconhecer. A voz firme e intacta do preto velho perfurava os ventos frescos da noite, e de uma berma a outra descobriram de que fora feita a vida deles pelos anos adentro. Patrícia voltara a cruzar-se com Manuel António, desta feita, num fim de tarde, hora habitual em que Manuel António passara a vir à cidade para a sua profissão de guarda-nocturno. A jovem fitou os mesmos pés largos do velho, as rugas que apenas se insinuavam, e o porte destemido de um homem que vivera entre o interior e a cidade.
Num dia como um outro qualquer chegou à Patrícia, a triste notícia do falecimento de Manuel António. Fora encontrado tombado numas das eternas rochas em cone da Cidade de S. Pedro, depois de permanecer três dias desaparecido.
Manuel António presenciara por aqueles dias como guarda-nocturno, um assalto, e terá sido esta a causa da sua morte na cidade em que vivera e ajudara a ser.

imagem: magrite